Era uma manhã de sábado ensolarada, linda, idêntica a essa de hoje, na qual me sento para escrever. O brilho do dia me despertava com angústia, o coração apertara. Não era meu fim de semana de viajar, já o havia feito na semana anterior. Mesmo assim, olhei o céu e decidi pegar a estrada logo que cumprisse os compromissos do dia.
Peguei uma bolsa pequena, poucas roupas, sou prática. Avisei o meu filho Lucas para fazer o mesmo, íamos rumo a Solânea ainda naquela manhã. Deixei-o no curso de inglês e segui para o trabalho, onde todos conseguiam enxergar meu olhar apagado.
Fim da manhã, trabalho cumprido, aula de Lucas finalizada. Me despeço do amigo que dividia o plantão comigo dizendo: vou a Solânea, caso segunda-feira eu não apareça é porque meu avô morreu. A resposta trouxe segurança para o percurso de pouco mais de 130 quilômetros de distância. “Vai com Deus amiga! Avisa se acontecer”.
Não corri. Segui o curso natural da estrada que me levava para a maior despedida da minha vida.
A chegada foi dolorosa. Já vinha sendo havia algumas semanas. Ele estava muito fraco, mas ainda respirava. A porta do quarto era mantida fechada. Cuidávamos para que as crianças não o vissem, a cena não era bonita. O câncer corroera seu rosto, literalmente. A ferida exposta era imagem para nunca mais esquecer.
Lucas passava para lá e para cá, tinha 13 anos e sua maturidade desde muito pequeno sempre me surpreendia. Percebi sua inquietação. Resolvi deixar que ele decidisse e perguntei se queria pedir a bênção ao bisavô tão amado. A resposta foi a esperada. Sim!
Entrou no quarto, debruçou-se para beijar-lhe a testa. Foi um momento nosso. O bisavô abriu os olhos por um instante, não conseguiu responder em palavras. Não era necessário, a bênção era evidente na resposta visual. Lucas manteve-se firme, não estava assustado com a cena, só queria o último beijo, a última bênção. Corações amorosos, muito parecidos, sentimento que vai além da genética de bondade.
O dia passou rápido. À tarde, um mutirão se formou em busca do remédio para aplacar sua dor intensa, nítida nos gemidos. A medicação não era vendida em farmácias, era preciso a ajuda dos amigos para conseguir. João Pessoa, Campina Grande, Recife. Mas, foi em Solânea mesmo que um grande amigo fez a doação.
A dor parecia aliviar, mas não sumir. Todos continuavam perto, ninguém queria a despedida, embora soubéssemos que ela estava cada minuto mais próxima.
Madrugada de sábado para domingo. Casa agitada. Filhos e netos se revezavam no quarto, ninguém conseguia dormir. No fundo sabíamos que estava chegando a hora. De repente, todos se encontravam no quarto, dividido com ela, a sua amada de uma vida inteira que participava daquele instante sem nada perceber. A doença de Alzheimer a tirou de cena.
O curativo começou a ser trocado e, como se sentisse a presença dos anjos que o vinham buscar, a filha enfermeira começou a dizer ao pai que ele não se preocupasse, para onde ele ia não havia mais dor e nem sofrimento. Fixei meus olhos no rosto dele, os ouvidos nas palavras consoladores ditas naquele instante.
Uma e meia da madrugada, olho seus olhos, o último suspiro chegou. Gritei! Descontrolei! Adeus vô? Não, eu não queria que ele se fosse. Quem iria me proteger agora? Quem iria cuidar de mim? O corpo inerte era o castelo desfeito, demolido. Inadmissível! Por quê?
Engoli o choro. Vamos para as ações práticas. Ligar para quem precisava saber. Contribuir para a organização da casa, em pouco tempo ela estaria cheia. Ele era muito querido na cidade. Homem honrado, ministro da igreja, trabalhador dedicado aos mais necessitados. Foi assim mesmo. Logo pela manhã a casa estava lotada e assim seguiu até o encontro da última morada física.
Engoli o choro de novo. Era hora de voltar à vida normal. Normal? Nunca mais minha vida foi normal depois desse dia. Demorou muito até compreender que ele vive. Nunca deixou de me proteger. Mesmo longe, vivendo em outra dimensão, sempre está presente e, quando me vejo no quarto escuro dos meus sentimentos, é sua imagem sorrindo que enxergo. Sua voz doce sempre me diz: Vai dar tudo certo!
Ele vive, tenho certeza! Sinto saudade! Pego essa saudade e transformo em trabalho. Ele era incansável na tarefa do Cristo, eu tenho tentado ser igual a ele. Ainda estou longe de alcançá-lo.
Continuarei me esforçando para colocar em prática seu maior ensinamento nos últimos dias. Pouco tempo antes da partida, reproduziu para mim um ensinamento de Jesus: “Pois é, minha neta. Essa é a única herança que vou lhe deixar. Faça sempre o bem, sem olhar a quem e sem esperar recompensa!”.
Estou tentando vô – Manoel Balbino da Silva! Estou tentando!
Por Nice